“Ele tinha razão em olhar através da morte;
é através do pó e dos escombros de um mundo
enterrado que olhamos para novos dias.”
Louise Michel – Tomada de Posse
Antigona, tragédia de Sófocles, inicia-se com a protagonista lutando para enterrar e prover os ritos sagrados ao corpo de seu falecido irmão. Contra Creonte, atual governante da cidade, reivindica-se a família, as leis divinas e o sepultamento. Hoje, no atual movimento propiciado pelos fluxos de capital do neoliberalismo e, 10 anos depois das revoltas e insurreições de 2013, talvez necessitamos urgentemente de seu oposto, uma negação radical. “É preciso então desenterrar os nossos mortos, pois somente deles receberemos nosso futuro”. Assim inicia-se Anti-Antigona, peça realizada pelo coletivo [conjunto vazio] em junho de 2023, que integrou a atividade “Quem tem medo de junho 2013?” em conjunto com a Kasa Invisível, na cidade de Belo Horizonte.
Os primeiros mortos a serem desenterrados são logo sinalizados, tanto no início do espetáculo, quanto no seu programa: Luiz Felipe e Douglas Henrique. Ambos foram mortos pelo Estado durante as revoltas de 2013 na cidade de Belo Horizonte. Desenterrar a revolta e o sangue que correu, lembrar de quem esteve lado a lado no fogo que ardia nas ruas, dos que foram presos, feridos, emocionalmente estraçalhados, é levar a sério um conhecido enunciado das lutas sociais: “ninguém fica pra trás”. Começa-se retomando o último, mais longo e maior período insurrecional da história recente deste território ocupado pelo Estado brasileiro, sem reduzir sua performance apenas a este acontecimento.
“Os performers, vestidos de negro e balaclavas, podem remeter logo no início a uma estética próxima ao que ficou marcado no imaginário brasileiro de 2013 com a “tática black bloc’.”
Em um terreno baldio localizado no bairro Santa Efigênia (o descampado), o espetáculo recebe o público e o aloca sentado – ou em pé – a uma grande distância onde os movimentos se realizam, produzindo certo incômodo no público que torna-se alvo da ação. A distância (quando não o ataque) que se toma em sua relação é também o afastamento da passividade do espectador, da reprodução da espetacular vida cotidiana de um “cidadão de bem”.
Os performers, vestidos de negro e balaclavas, podem remeter logo no ínício a uma estética próxima ao que ficou marcado no imaginário brasileiro de 2013 com a “tática black bloc”, e aqui, “brecht bloc”. No entanto, fica igualmente claro uma diferença nesta utilização. Nos braços de cada um tem uma braçadeira branca, nas bandeiras balançadas quadros do pintor russo Kazemir Malevich, fundador da escola artística do suprematismo. Se retomamos a imagem das pessoas vestidas de negro erguendo barricadas nas ruas, também fica claro uma discussão sobre a supremacia de um universal que esmaga a vida: o Estado, a cidade, a higiene da degeneração (discurso oriundo da psiquiatria que transitou históricamente entre direita e esquerda) e até a própria revolução.
No entanto, é preciso diferenciar Anti-Antigona da leitura de intelectuais progressistas brasileiros que viram nos Black Blocs o germe de um facismo, apenas para defenderem a sua própria perspectiva mesquinha e funerária. Aqui, é como se os vultos negros que se movem não fossem uma identidade portadora de uma essência, cada movimento só obtem seu sentido diante das relações travadas em cena. É como ocorre na diferença entre o jogo de xadrez e o jogo de go, como sinalizado por Gilles Deleuze e Félix Guattari no Mil Platôs. No xadrez, os movimentos das peças são definidos pelo que elas são desde sempre: cavalos, torres, reis, rainhas. No go, temos apenas pedras pretas e brancas, sua definição se dá antes por uma função tática que desempenham na relação que travam com as outras peças. Ao longo da apresentação cada elemento conta para uma mudança de perspectiva: as luzes, gravações, uma braçadeira que se esvai, uma máscara que cai, uma vidraça que se estilhaça. É neste sentido que é possível retomar, tanto a insurreição e a revolta, quanto a discussão sobre o suprematismo sempre vinculado a uma lógica Estatal interligada ao fluxo das mercadorias.
Outros mortos são desenterrados. Em uma cena, imagens de figuras importantes na construção histórica do socialismo são trituradas em uma máquina: Mao, Lenin, Bakunin, Marx, Louise Michel, Hegel, Stalin… As tiras de papel se amontoam sobre uma pessoa, mostrando um passado que pesa e soterra por meio de um tempo tratado como acúmulo, continuidade, progresso, mas que é desenterrado na medida em que é preciso também ser triturado. Não cabe o retorno simples, nem a busca da revolução perdida, cabe retomar as lutas no hoje, e picar qualquer imagem que se faça pretensamente sagrada, aprisione o futuro e projete uma nostalgia paralisante do passado.
“10 anos após aquelas revoltas, trata-se de também lembrar que a luta é contra esta mortificação, fundamentalmente porque lutamos fazendo uma vida que valha a pena a ser vivida.”
A-, a personagem que ocupa o espaço que seria de Antígona, morre pelo menos duas vezes, uma, pela voz de Creonte, outra em nome de uma dita revolução. No primeiro caso, a morte é declarada em nome da cidade contra uma minoria de vândalos, mesmo discurso que proferido pela voz da presidenta, dos jornais ou de intelectuais, legitimou a brutal repressão que tem, entre seus corpos, Douglas Henrique e Luís Felipe. No segundo ato, A- saiu da linha, embora tenha participado da guerra civil. Sua morte é declarada em nome do proletariado, de um novo homem, de uma nova história e de tantos outros “sins” que depositam esperança em um futuro que se abriria com um reino glorioso, em detrimento de todo presente. Em ambos, um desejo de limpeza, seja da cidade ou da história, em nome da lei, ou pretensamente em nome da classe (e que diz muito mais sobre um partido).
É para o começo da apresentação que devemos voltar, pois um sentido possível pode conectar esta sessão de desenterro. Seja na retomada do sangue escorrido, seja no ritual de trituração de cadáveres-ídolos, nossos mortos nos oferecem gentilmente um espelho.
Anti-Antigona mostra outro momento de 2013, onde uma autoridade policial, do alto de um carro de som, bradava para os “cidadãos de bem” voltarem para as suas casas, não se misturarem com bandalheiros. “Estamos devolvendo a cidade pra vocês”, dizia ele. Voltar para casa, retomar a realidade de um trabalho cada vez mais precarizado, comprar, vender, precificar, olhar a emergência climática diante de nossos próprios olhos sem “poder fazer nada”, os corpos no chão, o aparato policial de repressão e segurança sustentado pelo Estado, o encarceramento em massa, a multiplicação do sofrimento mental que metodicamente tenta ser contido na forma de um manual diagnóstico como braço de uma economia-política. Já não há derrotados ou vencidos, porque a catástrofe é exatamente o que tentam chamar de vida. Se voltamos, ou se muitos pensam terem retornado, a peça nos alerta que nunca houve uma casa para voltar, mesmo que um governo neoliberal um pouco mais acolhedor se restabeleça com o nome de esquerda.
Olhar para a insurreição, a revolução e a história, enfrentar os mortos, é ver como imagem refletida nossa própria morte na reprodução desta vida zumbi. 10 anos após aquelas revoltas, trata-se de também lembrar que a luta é contra esta mortificação, fundamentalmente porque lutamos fazendo uma vida que valha a pena a ser vivida. É também neste sentido que Anti-Antigona nos mostra um teatro como ação direta, pois é a negação radical de sua própria condição, despida das representações. Não cabe temer ou esperar, mas fazer novas chamas em encontros com as fagulhas lançadas pelo [conjunto vazio] nas noites secas de Belo Horizonte. São brasas ao vento que nos atiçam a queimar vida diante deste enterro chamado capitalismo.
Sobre os autores
é antropólogo e pesquisador. Trabalha como acolhedor, redutor de danos e professor de cursos de extensão no PROAD - UNIFESP e faz parte do coletivo que organiza a FLIPEI.